Ivo Canelas assistiu a julgamentos para compora sua personagem em "Liberdade 21", série da RTP.Ser advogado é "esgotante", constatou o actor.
Ivo Canelas é um actor multifacetado. Aos 34 anos, conta no currículo com trabalhos em todos os géneros de representação. Tem tido uma presença assídua na sétima arte, nos palcos e popularizou-se na televisão em "O fura vidas", série que co-protagonizava com Miguel Guilherme.
Recentemente, regressou ao pequeno ecrã, integrando o núcleo principal de "Liberdade 21", ficção estreada na RTP há uma semana, no papel do advogado Afonso Ferraz.
As séries sobre advogados ainda estão na moda?
Têm uma componente dramática que ainda não explorámos. Mas acho que tem de ser o espectador a decidir isso. Espero que "Liberdade 21" venha preencher uma lacuna. Se não estou em erro, não tinha havido uma série de "adovogados à portuguesa".
Qual é a sua perspectiva sobre o investimento da estação pública em séries?
Qualquer estação deve investir em ficção nacional. Se a RTP1, como canal do Estado que é, puder fazer um esforço nesse sentido é uma mais-valia. Espero que a competição entre os canais vá fazendo subir a fasquia. Temos de escrever muito para criar uma indústria nacional mais treinada.
"Liberdade 21" é uma série vanguardista?
Não sei se será vanguardista. Espero que tenhamos conseguido uma linha narrativa menos óbvia. A forma como os guiões estão escritos, de um modo não completamente linear, faz com que a representação esteja mais livre e se confie na inteligência do espectador - eu acredito que as pessoas são naturalmente inteligentes, pelo que não devemos subestimá-las. Do ponto de vista da realização, ressalvando que vi apenas dois episódios, espero que se tenha conseguido uma linguagem mais documental, onde a câmara segue o actor, sendo que este acaba por ter o corpo mais presente.
Inspirou-se em algum produto estrangeiro para construir a personagem?
Recorri às referências do que foi escrito pelas Produções Fictícias. A série é livremente inspirada em séries sobre advogados, sobretudo no "Boston legal". Vi o "Boston legal" há uns anos atrás, quando estava a viver em Nova Iorque, e, apesar de tudo, acho que alguma da estrutura é semelhante mas o registo é completamente diferente. Até porque o nosso sistema judicial é radicalmente distinto do norte-americano, não tem a mesma flexibilidade, o que lhe limita alguma espectacularidade. Acabo por me inspirar mais na nossa realidade e de alguma forma nas nossas condições de trabalho social, às vezes absurdas e mesmo mal preparadas. Da realidade americana retiramos principalmente um estereótipo.
Pode descrever o Afonso Ferraz?
Sumariamente, é um advogado profundamente empenhado e envolvido, tecnicamente muito exigente. Tratam-se de pessoas da minha geração, que trabalharam muitíssimo para acabar os cursos, para ter os estágios feitos e para ingressar num escritório. Eles são muito competentes a nível profissional e são quase crianças no plano emocional. E essa será, sem dúvida, a sua característica mais forte: uma enorme incapacidade de equilibrar o profissional, onde é obsessivo e ganha sempre, com o emocional onde é tudo muito remendado. Neste conflito está inserido um divórcio mal resolvido.
Como é que se preparou para interpretar o papel?
A produção ajudou-nos imenso no sentido de termos contacto com profissionais da área e fomos assistir a uma série de julgamentos, aproximando-nos do lado técnico e profissional. Tivemos contacto com várias abordagens com registos variados, mas uma dessas pessoas mostrou-me o lado mais humano desta profissão. Às vezes imaginamos as coisas um bocadinho por alto e não vamos à essência. A responsabilidade de se ter um cliente ao nosso cuidado faz-nos pensar que as horas em que se dorme são aquelas em que não se salva ninguém. E foi essa a força que eu tentei imprimir. A verdade é sempre um objecto estranho que pode ser visto de ângulos muito diversos, mas o facto é que a vida das pessoas está em jogo e isso tem de se respeitar.
Ficou com uma ideia diferente da justiça portuguesa?
É uma justiça um bocadinho formal. Num dos julgamentos a que assisti, apercebi-me um pouco das fragilidades e das deficiências do sistema, dos problemas estruturais. São profissões de risco e realmente esgotantes quando levadas até às últimas consequências e encaradas com seriedade.
"Liberdade 21" tem uma preocupação com a verosimilhança. Há uma correspondência clara com a realidade?
Os caso são todos inspirados em casos reais e foram todos verificados por profissionais. Nós nas gravações, nas cenas de tribunal tínhamos sempre acompanhamento. Para mim, é uma mais-valia absoluta, gosto de trabalhar também num regime de improviso e de perceber qual é que é o limite e tentar forçá-lo um bocadinho. Mas realmente é preciso haver alguém com um selo de verdade a dizer o que é, ou não, possível. Houve um enorme esforço de ir encontro à realidade.
Qual foi o aspecto mais difícil ao vestir a pele de um jurista?
Acima de tudo acho que é uma determinada maneira de raciocinar. Entre o universo artístico e o jurídico, é engraçado porque ambas as profissões têm em comum o lado de não julgar, no sentido de que eu como actor não posso julgar um personagem, tenho de acreditar nele e defendê-lo, assim como o advogado faz em relação ao seu cliente. Agora, há um sistema mental que me colocou alguns problemas que foi abandonar um pensamento mais abstracto e torná-lo mais específico. A maior dificuldade foi essa: encontrar uma maneira de raciocinar substancialmente mais pragmática.
Um advogado também tem de ter um pouco de actor...
Sem dúvida. No nosso sistema judicial menos, porque raramente há a figura dos jurados. O lado da representação pode ser um bocadinho perigoso pois também nos pode rebentar nas mãos. Terá de ter, mas é uma das questões da personagem. Por exemplo, o Pedro, interpretado pelo Albano Jerónimo, tem uma faceta manipuladora, mais teatral. Apesar de tudo, o Afonso usa menos artíficios e acredita numa advocacia menos espectacular. Quando recorre ao lado de actor será sempre em última instância.
O que é que esta série vai dar de diferente aos espectadores?
Espero que tenhamos conseguido trazer momentos de realização, escrita e interpretação fora do convencional. As personagens estão a dizer uma coisa, a pensar outra e a fazer ainda outra coisa. Que traga uma maior complexidade à narrativa, que se confie na inteligência do espectador.
Não é arriscado investir na segunda temporada sem haver "feedback" da primeira?
Isso escapa-me completamente. Mas é porque a RTP acredita na qualidade da série que resolveu arriscar.
Porque é que decidiu abandonar "Liberdade 21" na segunda série, deixou de acreditar no projecto?
Não, já tinha coisas apalavradas em relação a outros trabalhos em que estou agora envolvido.
Vai elencar "Conexão", de Leonel Vieira. O que nos pode contar?
É uma minissérie de dois episódios para a RTP, onde existem duas histórias paralelas relacionadas com o narcotráfico.